Os Rolling Stones do Nordeste: conheça o Ave Sangria



Por Rose Gomes




Rock Psicodélico Nordestino. Talvez você nunca tenha ouvido esta expressão, muito menos este som e eu te digo: é algo muito bom!  E a banda pernambucana Ave Sangria é um dos grandes expoentes desta cena.
Formada no início dos anos 70, a banda contava com Marco Polo (vocais), Ivson Wanderley (guitarra solo e violão), Paulo Raphael (guitarra base, sintetizador, violão, vocal), Almir de Oliveira (baixo), Israel Semente (bateria) e Agrício Noya (percussão).  Os músicos misturavam sons do folclore local com o rock e a psicodelia da época. Inicialmente o grupo se chamou “Tamarineira Village”, mas tempos depois acabou adotando o nome “Ave Sangria” que segundo conta a lenda foi sugestão de uma cigana que os caras encontraram no interior da Paraíba. “Ela gostou de nossa música e fez um poema improvisado, referindo-se a nós como aves sangrias. Achamos legal. O sangria, pelo lado forte, sanguíneo, violento do Nordeste. O ave, pelo lado poético, símbolo da liberdade do nosso trabalho”, explicou certa vez o ex-vocal da banda Marco Polo.
Em pouco tempo a banda ficou conhecida como os “Stones do Nordeste”, devido às performances  excêntricas de palco que além de tudo incluíam o uso de batom – que anos mais tarde um de seus integrantes confessou ser mertiolate, “que a gente usava para chocar” – e até mesmo uns beijinhos na boca dos colegas de banda. 
A loucura parecia mesmo fazer parte do cotidiano dos músicos e certa vez um deles enviou um baseado em papel Colomy para o beatle Paul McCartney que meses depois lhe enviou uma foto autografada em agradecimento pelo mimo enviado.

Em questão de pouco tempo a banda recebeu um convite da gravadora Continental (pioneira no país a apostar no rock brasileiro), para gravar o que seria seu primeiro e único álbum.  Donos de uma irreverência exacerbada, os caras chegaram ao estúdio em pleno Rio de Janeiro munidos cada um de peixeira na mão. O disco de 1974 foi produzido em meio a pouca experiência do ex-ídolo da Jovem Guarda Marcio Antonucci, que perdido em meio àquela mistura alucinada de ritmos e timbres, simplesmente deixou rolar.  Apesar do resultado não ter agradado aos músicos o álbum teve boa aceitação no sudeste e principalmente no nordeste.
Em dezembro do mesmo ano, o Ave Sangria fez uma mítica apresentação com o show Perfumes & Baratchos. Aquele seria o último show em quase 38 anos, já que  a banda voltou em maio do ano passado para uma única apresentação  de seu álbum na íntegra, como parte do projeto Álbum, em que artistas tocam seus discos inteiros.
Ave Sangria, o álbum
O álbum de estúdio da banda, filho único do Ave Sangria, traz uma deliciosa mistura do rock psicodélico e experimental  próprios da década de 70, passeando graciosamente por elementos da música nordestina rural. Um show de musicalidade e variedade instrumental.
No conteúdo das canções, letras poéticas, libertárias e até mesmo irreverentes fazendo deste álbum uma obra cultuada por diversos apreciadores da boa música.

As raízes da música nordestina se fazem presentes em todas as faixas, deixando de maneira generosa que a precisão da guitarra e a força da batera cheguem aos poucos e contrastem harmoniosamente entre os elementos da música rural. Prova disso são as faixas Momento na Praça e a fantástica Por Quê? Mas, sem dúvida a canção que mais causou polêmica foi a “romântica” Seu Waldir. Nela, o vocalista faz uma clara declaração de amor a um cara que virou uma verdadeira “lenda” para muitos. Enquanto alguns acreditavam que se tratava de um senhor que morava em Olinda, outros pensavam que Seu Waldir poderia ser um jornalista, mas na verdade a canção foi encomendada pela atriz Marília Pera como trilha para a peça “A Vida Escrachada de Baby Stomponato”, de Bráulio Pedroso, que no final acabou não aproveitando a música.
“… Eu trago dentro do peito
Um coração apaixonado
Batendo pelo senhor
O senhor tem que dar um jeito
Se não eu vou cometer um suicídio
Nos dentes de um ofídio vou morrer…”

Fato é que com esta canção o grupo foi acusado de fazer apologia ao homossexualismo e o Departamento de Censura da Polícia Federal recolheu o disco das lojas  e tempos depois a  banda relançou o trabalho sem a faixa. Vale lembrar que isso aconteceu em uma época em que a androginia despontava no cenário musical com grandes nomes como Bowie e Alice Cooper, além da presença brazuca de Ney Matogrosso e seu Secos & Molhados.
Deste épico álbum ainda vale destacar as faixas Lá Fora, (com letra adoravelmente melancólica), Hei!Man – que traz a forte presença do instrumental nordestino mesclado a elementos psicodélicos e com letra cativante, Corpo em Chamas com instrumental que remete bastante a Raul Seixas e a incrível Geórgia, a Carniceira com um solo de guitarra bastante interessante e uma boa pegada no baixo. Uma das faixas mais fascinantes do álbum que ainda traz a experimental e progressiva Sob o Sol de Satã, mostrando  o alto  nível profissional dos caras.
É realmente uma pena que uma banda de futuro tão promissor com esta tenha tido uma vida tão breve. Fica a dica pra quem não conhece e gosta de se surpreender com sons inusitados e marcantes.



Postado originalmente no blog Cadê Meu Whiskey.

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